A morte do papa Francisco, no último dia 21 de abril, encerra uma era marcada por um raro compromisso da liderança religiosa com a emergência climática e a justiça social como um imperativo moral e ético do nosso tempo. Associando, de forma singular, fé, ética e conhecimento científico em defesa da vida no planeta, o pontífice adotou uma linguagem clara sobre as mudanças climáticas, as desigualdades e a degradação ambiental, transformando-se numa das vozes mais influentes do século XXI sobre a sustentabilidade e a proteção dos mais vulneráveis.
Suas duas encíclicas sobre o tema, Laudato Si’ (2015) e Laudate Deum (2023), são hoje referências não apenas para líderes religiosos, mas também para cientistas, ativistas e formuladores de políticas públicas que buscam integrar ciência e justiça social em respostas concretas à crise climática.
Entre os que vivenciaram de perto essa aproximação entre espiritualidade e ciência está o físico Paulo Artaxo, professor da USP, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e membro do IPCC – Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU. Em março de 2024, Artaxo participou de um encontro promovido pela Pontifícia Academia de Ciências, no Vaticano, que reuniu lideranças indígenas e cientistas de vários países para discutir vulnerabilidades e soluções baseadas no diálogo entre saberes tradicionais e acadêmicos. Na ocasião, ele apresentou a conferência “A floresta Amazônica protegida pela população indígena”.
Nesta entrevista ao Jornal da Ciência, Artaxo analisa o legado de Francisco na agenda ambiental, reflete sobre os riscos de retrocessos com a sucessão papal e reforça a importância de manter viva a aliança entre ciência, ética e espiritualidade como um caminho necessário para um futuro justo e sustentável. “Esperamos que a Igreja Católica continue nessa trajetória de ser um player internacional muito importante, particularmente na questão ética, porque sua permeabilidade em muitos países é enorme e ela pode fazer toda a diferença na conscientização das populações”, diz.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
Jornal da Ciência – O senhor participou, em março de 2024, de um evento no Vaticano que reuniu cientistas e lideranças indígenas, com a presença do apa Francisco. Qual foi, na sua avaliação, a principal contribuição desse encontro para o fortalecimento do diálogo entre ciência, saberes tradicionais e preservação ambiental?
Paulo Artaxo – O papa Francisco sempre teve um empenho muito forte na questão da integração entre ciência, saberes tradicionais e preservação ambiental. Para isso, a Academia de Ciências do Vaticano, sob a liderança do papa Francisco, organizou em março de 2024 um evento que reuniu cientistas que trabalham com a questão climática, com lideranças indígenas, e, como resultado, houve um diálogo muito importante sobre os riscos que as mudanças climáticas podem trazer para as populações tradicionais, sobre o seu modo de vida, inclusive sobre a sua própria sobrevivência. Aquele debate produziu documentos da Igreja, da Academia do Vaticano, que foram encaminhados para vários organismos internacionais, inclusive para as Nações Unidas, e eles compõem um conjunto de ações que devem ser implementadas para preservar o conhecimento tradicional e garantir a sobrevivência dos povos tradicionais, em particular, indígenas da Amazônia.
JC – As encíclicas Laudato Si’ (2015) e Laudate Deum (2023) abordam a crise climática de forma direta e com forte embasamento científico. Como o senhor enxerga o impacto desses documentos no debate internacional sobre mudanças climáticas e na forma como diferentes setores da sociedade percebem o tema?
As encíclicas Laudato Si’ e Laudato Deum, publicadas pelo Papa Francisco, abordam a questão das mudanças climáticas de uma forma muito interessante, considerando o que a ciência às vezes não leva em conta, que são as questões éticas. As duas encíclicas apontam para a necessidade de prestarmos atenção na ética das mudanças climáticas globais, como é que elas estão aumentando as desigualdades sociais, como as mudanças climáticas colocam em risco as populações mais vulneráveis do nosso planeta. Elas são um primor de um chamamento da humanidade para os riscos sociais, econômicos e ambientais que o atual sistema econômico está impondo à humanidade. É difícil a gente realmente saber qual foi o impacto que as duas encíclicas tiveram nos diferentes setores da sociedade, mas sem dúvida nenhuma, no setor religioso essas duas encíclicas chamaram a atenção para os aspectos éticos das mudanças climáticas. Por exemplo, um bebê que esteja nascendo hoje vai ter cerca de 70 anos em 2090, com um clima muito diferente do que temos atualmente. É ético comprometermos a vida de quem está nascendo agora ou ainda vai nascer? Estamos comprometendo a vida de quem ainda vai nascer, pelas emissões de combustíveis fósseis hoje. É possível que as mudanças climáticas não permitam a sobrevivência de centenas de seres humanos (os mais vulneráveis) nas próximas décadas. São questões absolutamente importantes e estratégicas e que, esperamos, sejam levadas em conta pelos políticos e pelo sistema econômico como um todo.
JC – Os documentos também destacam o papel dos povos originários na proteção dos biomas, com ênfase na Amazônia. De que maneira essa valorização dialoga com o trabalho que o senhor desenvolve e com o reconhecimento crescente da importância dos conhecimentos tradicionais nas estratégias de conservação?
PA- A ciência no Brasil sempre tem apontado que as áreas mais bem preservadas da Amazônia são as áreas ocupadas pelos povos tradicionais, porque esses povos aprenderam, ao longo dos últimos milênios, como tirar o seu sustento e a sua sobrevivência da região amazônica sem destruir essa região. Eles manipulam o ecossistema de uma maneira sustentável e isto é muito importante – e é uma coisa que a nossa sociedade tem que aprender sobre como fazer isso de uma maneira sustentável, como não deixar com que os interesses econômicos se sobreponham às necessidades de preservação desses ecossistemas que são críticos para o futuro não só do Brasil, mas para o futuro do planeta todo.
JC – O Laudate Deum aponta que interesses econômicos têm dificultado avanços nas políticas climáticas globais. Em sua opinião, esse tipo de posicionamento vindo de uma liderança com grande alcance simbólico contribui para ampliar a pressão por mudanças concretas?
PA- Não há dúvida nenhuma de que os interesses econômicos predatórios do meio ambiente e do clima do nosso planeta são o ponto principal na questão das mudanças climáticas globais. Em particular, acho que é importante a gente perceber que menos de 36 empresas globais são responsáveis por quase 50% da extração de petróleo, carvão e gás natural no nosso planeta. O interesse econômico de poucas dezenas de empresas estão se sobrepondo aos interesses de oito bilhões de pessoas no nosso planeta. Essa questão tem que ser discutida de uma maneira completa, integrada com a questão ética. E as empresas que exploram combustíveis fósseis têm que começar a reconhecer o dano que elas estão fazendo ao clima do planeta, comprometendo o futuro climático da Terra, e para isso tem que haver uma política de reparação dos danos que estas poucas indústrias estão fazendo para o planeta como um todo. Então, uma mudança no sistema econômico é absolutamente essencial para que seja possível construir uma economia global que seja minimamente sustentável, que consiga viver dentro dos limites planetários que cada vez mais estão ficando mais próximos. Estamos ultraando o limite sustentável da economia e do uso de recursos naturais do nosso planeta e isto é uma questão fundamental que a encíclica Laudate Deum aponta, claramente, de que estamos fazendo isso em detrimento de oito bilhões de pessoas para o lucro de algumas poucas empresas e do sistema financeiro, que com isso está concentrando a renda das atividades econômicas do nosso planeta na mão de muito poucos. Isso tem que mudar.
JC – A morte do Papa Francisco encerra um ciclo marcado por uma atuação destacada em temas como justiça climática, desigualdade e meio ambiente. Como o senhor avalia a relevância dessa contribuição no cenário internacional e que desafios se colocam para manter esse tipo de abordagem integrada entre ciência, ética e política?
PA- O papa Francisco foi fundamental para termos uma abordagem integrada entre ciência, ética e políticas públicas. O que vai acontecer com a mudança do pontífice, é muito difícil de prever neste momento. Se tivermos um novo papa da ala conservadora da Igreja, ele pode simplesmente interromper este processo. A polarização e disputa entre retrógrados e progressistas também existe no Vaticano. Esperamos que a Igreja Católica continue nessa trajetória de ser um player internacional muito importante, particularmente na questão ética, porque sua permeabilidade em muitos países é enorme e ela pode fazer toda a diferença na conscientização das populações com a questão da justiça climática, redução das desigualdades e construção de um meio ambiente que seja justo e sustentável. Isso ajuda muito na construção de um novo sistema econômico sustentável, que não é o que nós temos hoje. Esta construção social pode levar a um novo caminho de sustentabilidade econômica mais justa e com menor impacto nos limitados recursos naturais do nosso planeta. Isso é absolutamente estratégico e a gente espera que a morte do papa Francisco não tenha encerrado este processo. Que este processo continue, porque o papel da Igreja Católica é extremamente importante na questão ética, ambiental, climática e de justiça social.
Daniela Klebis – Jornal da Ciência